Literária sempre. Monótona, jamais.

Devaneios de um protótipo humano na infoesfera.

sábado, 8 de junho de 2013

Cegueira Social


Por: Viviane Cabrera








Os olhos azuis estavam estrategicamente escondidos atrás de um óculos Ray-Ban modelo aviador. O sol irritava suas vistas. Pele alva, mas que com as marcas do tempo já denunciavam a idade: devia ter lá pelos seus sessenta anos. Era uma senhora loira, imponente e de modos refinados.

Estava ela em um bistrô, o qual entrei para beber algo para me refrescar. Mas não quis ficar no balcão. O calor cansa a gente. Aí decidi que o melhor seria ir para uma mesa e descansar. Havia eu e mais dois clientes além da tal mulher. Daí a facilidade que se tinha em ouvir claramente o que cada um dizia. Um rapaz calvo e baixo pedia uma água com gás, gelo e limão enquanto esperava alguém. O outro, um sujeito sisudo e de poucos amigos, bebia um café. Aquela senhora balançava um copo com a mão e tomava água em goles tranquilos. Era quatro da tarde.

O garçom percebeu o tédio nela e resolveu puxar assunto. Comentou do tempo louco de São Paulo. Dos transportes públicos lotados. A senhora empolgou-se e resolveu conversar.

Começou por contar ao rapaz que trabalhou como metroviária, mas que agora estava aposentada. Conhecia de perto as dificuldades desse tipo de transporte. E é aí que iniciou os comentários que chamaram minha atenção.

_ A culpa da superlotação de São Paulo é a procriação indiscriminada desses nordestinos. Precisamos, nós do sul e sudeste, mandar todos eles de volta para a terrinha!

O garçom franziu o cenho com o que ouviu, mas ficou quieto. Notava-se pelo biotipo que ele era nordestino. Talvez os óculos Ray-Ban tivessem impedido a madame de perceber isso - o que a fez continuar com entusiasmo. Ressaltava as palavras arrastando os "erres", com o típico sotaque paulistano. 

_ Veja você. Se o problema no Brasil fosse somente os transportes estaria bom. Mas é tudo, menino! Tudo! Só se ouve dizer que fulano roubou dinheiro público. Antes desse "Nove Dedos" e a turminha dele entrar lá em Brasília, não tinha nada disso. Você ouvia falar de corrupção? Eu não ouvia! Então é porque não tinha. E isso de um presidente semianalfabeto! Deu no que deu. Fica nessa de assistencialismo, distribuindo o dinheiro da gente que trabalha e paga impostos, para essas pessoas que não querem nada com nada e só fazem filho. Vai lá! Vai ver a favela! Tudo vagabundo! Ninguém quer trabalhar porque já recebe "bolsa isso", "bolsa aquilo"... Coisa desses comunistas que estão no poder! Estão acabando com o país. 

O estômago embrulhou. Que tipo de realidade paralela essa pessoa vivia? Como pode uma distorção tão grande da realidade? Eu continuava apostando que a culpa era do Ray-Ban. Escurecia suas vistas a ponto de que ela não enxergasse direito o que se passava. Pedi ao outro garçom - para não atrapalhar a conversa do coitado que emprestou o ouvido à mulher - uma água tônica para desfazer o mal-estar que a sujeita me causou.

_ Acho que favelado não tinha que receber auxílio gás! Porque se estão na favela, foi uma opção deles. Eles optaram por deixar para trás a decência para se viver. Não quiseram viver como bichos na favela! Pois que fiquem sem conforto. Nada de o Governo dar auxílio em dinheiro não! Vai trabalhar, vagabundo! Por isso é que eu prefiro Europa. É outra coisa. O povo é civilizado e não tem nada disso de favela ou mendigo. Logo eu viajo para lá.

Olhei o garçom. Estava incomodado com aquele papo da dona do Ray-Ban. Procurava uma forma de se esquivar. Quis apenas ser gentil e teve seu ouvido transformado em penico. Cansado do discurso elitista e reacionário da leitora da ex-colunista da Folha, Danuza Leão, o moço limitou-se a pedir licença e dizer que precisava voltar ao trabalho.

Tive de me conter para não cair na gargalhada. Quando a loira disse que moradores de favela optaram por viver ali, abrindo mão de uma vida confortável, assinou o atestado de ignorância. Digo ignorância, pois vê-se bem que essa senhora desconhece completamente o país onde mora. E desconhece porque lhe é conveniente ficar assim, sem saber. Do contrário, teria de fazer algo para reverter o que de ruim ocorre. Mas essa não é sua intenção. O que importa é o capítulo da novela, as viagens. O próprio umbigo como prioridade máxima.

Penso que o mundo está repleto de senhoras e senhores de "óculos Ray-Ban". Não enxergam um palmo diante de si. No entanto, sentem-se no direito de "opinar com a opinião dos outros", reproduzindo o que ouviram dizer.

Pensei em me levantar e ir conversar com a tal mulher. Contudo, não existe diálogo com uma pessoa que abraça apaixonadamente a ideologia de que pobre tem mais é que morrer de fome. É o tipo de gente que sofre de complexo do pombo enxadrista. Você chama para um debate. A criatura, acuada por não possuir argumentos contundentes para rebater os do outro lado, parte para a ignorância e ainda se porta com ares de superioridade - como se estivesse certíssima.

Fato é que resolvi deixar essa passar. Pelo menos ali, naquele momento. Alguns dias depois, ouvi o mesmo discurso, só que de alguém diferente. Cheguei a conclusão de que a sociedade está ficando cega e insensível. Só pode.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Somos Todos Estranhos



Por: Viviane Cabrera







Estranha. Era como ele me classificava. Não chegara a verbalizar qualquer coisa a respeito. Apenas analisava friamente. A mim e ao meu jeito desafinado de ser. Digo desafinado, porque às vezes algumas atitudes não harmonizam com o que realmente gostaria de fazer. Culpa da timidez.


Mas o julgamento que fazia dava de ombros para isso. Simplesmente dissecava cada célula viva e o que ia além. Para aquele sujeito, eu era estranha e ponto final. Dava vontade de dizer que minha vida não se resumia aos poucos minutos em que, desajeitada, enroscava-me no emaranhado das situações. Contudo, veio uma voz no ouvido que disse: "Hei! Deixa ele pensar o que quiser. Você sabe quem é. Isso, ninguém te tira". Fiquei um bom tempo refletindo sobre. Era o Amor-Próprio ou a Preguiça - de ter de argumentar -  que tentara comunicação? Difícil saber.

Todavia, querendo ou não, na cabeça dele era eu um tipo indefinível de pessoa que age coreograficamente desengonçada. Irritava ter aquela certeza nas mãos. Carregar a ideia era verdadeiramente um peso. Quem fala que não liga para essas coisas mente. Imagina só! Alguém que não conhece absolutamente nada do que foi vivido, sofrido, batalhado, te julgar! 

Um exemplo. Alguns silêncios são valiosos, pois com eles as poucas palavras ditas em seus intervalos ficam penduradas como pingentes. Tachar a ausência de comunicação de bizarrice é um engano. Não há injustiça maior do que essa.

Afora as considerações que a mente do indivíduo fazia de lá, lembro  cá do verso da famosa música  que  Caetano  cantou: "Narciso acha feio o que não é espelho". Somos todos estranhos uns aos outros. Ainda bem. Pois que seria um tédio tantas pessoas refletindo apenas virtudes. 

terça-feira, 26 de março de 2013

Ecos de Uma Reflexão



Por: Viviane Cabrera





Em uma das visitas à Favela da Linha, no bairro da Vila Leopoldina, aqui em São Paulo, fui conversar com dona Maria Nascimento de Jesus, de 58 anos. Ouvi uma frase que soou como sentença, como um tapa na cara - daqueles que você nem reage, tal a surpresa com que vêm.

Apesar da obviedade do que disse, as reflexões foram tão profundas que me agarrei a elas naquele momento, desviando a atenção da realidade. Por instantes, vi diversos pensamentos navegando em um oceano de águas revoltas. Um turbilhão de sensações passou a me atormentar sem mais nem menos. 

“A vida é feita pra se agoniar”, afirmou dona Maria, estabelecendo essa certeza em uma frase solta dentro de nosso bate-papo de comadres recém-conhecidas. Mal sabia o impacto que teriam suas palavras.

Então, minha cabeça começou a girar em meio a alguns questionamentos. Seria mesmo o sofrimento um mal necessário? Haveria jeito de escapar da loucura desconexa a qual estamos fadados a enfrentar cotidianamente?

Enquanto aquela senhora continuava a contar um pouco mais de sua trajetória, os ditos me enlaçavam apertando fortemente. Comecei a ficar incomodada. Estava perdida em pensamentos, quase sufocada de ansiedade para descobrir a chave do enigma que pousava como uma lâmina sobre minha cabeça. Tive de interromper a conversa. Em uma breve despedida, marcamos nova data para visitá-la a fim de dar seguimento à nossa prosa.

O primeiro lugar silencioso em que pensei em me enfiar foi em uma igreja. “Aqui poderei refletir um pouco, em completa paz e silêncio. Aquele pessoal consegue encontrar conforto nesse tipo de lugar. Por que raios eu não haveria de conseguir?!”, raciocinei. Contudo, parece que ânsias e dúvidas ecoavam, reverberavam naquele local sacrossanto. Não havia ninguém senão eu. 

 Na rua novamente, olhei para o céu e vi que estava para cair a chuva costumeira de final de tarde. Estava sem guarda-chuva, como sempre. Caminhei com as mãos nos bolsos e a cabeça pesada, carregando a confusão toda. 

Com seu jeito simples, dona Maria me mostrou o aspecto cru da existência, que não havia reconhecido até então. Em uma sucessão de repetições, vemo-nos envoltos nos mais diversos problemas. E os resolvemos. No dia seguinte há outro para azucrinar a paciência. 

“A vida é feita pra se agoniar”, ouço ainda aquela mulher sofrida dizer. Não há o que fazer a não ser concordar. Sábio como ela, o poeta, dramaturgo e romancista siciliano Luigi Pirandello escreveu: “Somos todos prisioneiro dos fatos”. E sou obrigada a acrescentar que contra eles, meu bem, ninguém pode. Nem mesmo os argumentos.

Agradeço à dona Maria...

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

À Noite



Por: Viviane Cabrera




O sol se vai
e a noite cai.
Cobre o dia de noite e sai
em busca do que mais atrai.

Vejo o céu e a lua que se esconde
os olhos se perdem sem que algo lhes assombre.
No ar, a esperança de que coisas sonde.
E o coração indaga: ONDE? ONDE?

No silêncio estrelado do breu
a expectativa de revitalizar o que adoeceu,
vai ao encontro de algo seu.
Fusão de duas vidas. Desejo meu.

E a lua esplendorosa e cheia
flutua no céu e nele vagueia.
Revela beleza que incendeia
uma alma que de desilusão às vezes falseia.


Tomando um céu inteiro
a lua plena vem com seu jeito faceiro
dar sua permissão para que o beijoqueiro
toque o mel de meus lábios desejosos de um jeito matreiro.

E quando o sol ao seu posto ameça retornar,
a noite se despede com a promessa de que há de voltar.
Há de trazer de à tona o sonho que guardado vai ficar
para no momento certo maravilhas fazer eclodir, revelar.

Vão-se embora as estrelas brilhantes.
Agora se apagam. Mas logo encantam como dantes
com suas luzes fortes e elegantes
que suscitam sensações mais que relevantes.

Que o dia lave a escuridão
e leve embora o que de resquício ainda oprime o coração.
Que reserve à noite sua volúpia e amplidão,
tornando nulo qualquer vestígio de sofreguidão.




domingo, 17 de fevereiro de 2013

Palavrear



Por: Viviane Cabrera





Jamais tome a palavra em vão.
Ela é ouro, prata. Nunca latão.
Substância máxima de comunicação.
Sem ela somos nada. Somos completa anulação.

Não subestime seu valor.
Ela seduz. Ela é a morte e o amor.
É sublime e rude simultaneamente com ardor.
Tem o poder tanto de união quanto desagregador.

Laçá-la já não se pode,
pois é livre na existência em que eclode.
Deixar fluir palavras é ode
que aos deuses em seus ouvidos o louvor prazerosamente explode.

Palavrear
nada mais é que uma arte milenar
onde se aprende a tumultuar ou acalmar.
É um jeito doce e inconsciente de se expor e amar.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Saia Ao Vento


Por: Viviane Cabrera







Num dia barulhento
a saia em meio ao vento
ondula livre, flutuando no nada,
querendo revelar o que por baixo dela  se guarda.

Vagueia,
como um rabo de sereia
no movimento que reproduz
enquanto olhos alheios observam seu farfalhar, coisa que seduz.

Num rompante,
sobe a saia com um vento matreiro e deselegante,
fazendo a moça ficar enrubescida 
por aquela cena constrangedora que por muitos fora assistida.

Logo volta a colar no corpo,
alisada pela tímida moça que retoma o habitual conforto.
É a saia um pedaço de pano que não se contenta
em ser somente vestimenta.

Ao fim do dia,
despe-se a mulher com displicência e afasia,
jogando a saia no cesto do que deve ser lavado.
Talvez a saia só queira mesmo é no vento mostrar o seu bailado.

Talvez sejamos nós
saias buscando livrar-se da vida atroz.
Talvez queiramos apenas a liberdade
de flutuar na vida e nela mover-se com autenticidade.








domingo, 10 de fevereiro de 2013

Pulso Pulsar


Por: Viviane Cabrera




Pergunto por ti e o coração responde em vão. 
Insensato coração!
Não sabe que poucos dão valor 
à preciosidade rara do amor?
Acorda, Alice!
Quem foi que disse
que amar traz felicidade?
Traz é a lacuna da saudade,
doendo
batendo
martelando forte no peito,
tirando a gente do eixo de jeito.
E assim vamos vivendo nessa dura realidade.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Amor de Carnaval

Por: Viviane Cabrera







Carnaval. Lá foi ele para um desses clubes pular à moda antiga com confete e serpentina. Não era à toa sua predileção por essa festividade. Talvez fosse um dos únicos momentos em que podia se dar ao luxo de rir a exaustão, se divertir, mesmo com o relógio ainda a trabalhar como o de costume, marcando compasso. Naqueles poucos dias, permitia-se viver fora da rigidez da rotina que o agrilhoava.

Beber com os amigos jogando conversa fora e sem franzir o cenho com preocupações escondidas em cantos dos pensamentos. Ali era livre. Saltava de pescoço em pescoço feminino que encontrava pelo caminho e não deixava promessas de ligações posteriores. Ficava apenas a lembrança de seus galanteios, cheirando a cigarro barato e cerveja vagabunda.

Anos e anos as mesmas velhas coisas, na mesma época, mesmos lugares, os mesmos amigos, as mesmas cantadinhas toscas mas que lhe rendiam noites prazerosas. Cansou. Nesse dia especificamente, pensou em ficar quieto, observar a folia. 

Hora marcada, lá estava ele. Começou a beber com os amigos e a discutir sobre as falhas no esquema tático da seleção brasileira, assunto de horas. E enquanto todos entretinham-se no debate acalorado, correu o olhar pelo salão. Não existia mundo lá fora. O microcosmo em que estava agora era de uma atmosfera de alegrias regada a uma artificialidade sem fim. 

Risos frouxos ecoavam de maneira macabra e o que antes fazia bem, agora estremecia seu corpo em constantes calafrios. Tudo muito diferente. O rapaz já pensava em se retirar do clube, pois aquelas novidades que talvez sempre estivessem bem debaixo de seu nariz e ele não percebera o incomodavam enormemente. Contudo, seus olhos ficaram magnetizados em um ponto fixo.

Estática, com uma taça de martini na mão direita, estava uma moça. Olhar rutilante, cabisbaixa, fazia ela movimentos circulares com o drink como se isso pudesse misturar a realidade que a atormentava ainda ali, naquele faz de conta, e ver no que ia dar.

Intrigava aquela figura altiva e atraente parada, esperando um sei lá o quê do acaso. Tentou imaginar as diversas hipóteses do que poderia passar naquela alma solitária e esse encontro que ele tinha naquele instante com o desconhecido, o obscuro, o excitava.

Aproximou-se com um martini na mão, que ofereceu a ela, e sentou displicentemente ao seu lado. A mulher era de uma substância que ele não estava acostumado. Era diferente e isso despertava nele uma ansiedade. Depois de meia hora de investidas frustradas, agradeceu a companhia, disse adeus e foi em direção à saída. Queria sair daquele inferno. 

De repente, sentiu que seguravam seu braço. Era ela. 

- Me leva pra longe daqui. Não importa o lugar. 

Foram para um bistrô ali próximo, onde era mais calmo e conseguiriam conversar.

- Por que mudou de ideia? - o homem se contorcia de curiosidade.

- Vi que você é diferente.

- Diferente? Eu? - e riu-se, deixando a cabeça pender para trás - Explica isso que quero entender.

Observou que enquanto esboçava de falar, a moça cutucava nervosamente a cutícula das unhas.

- Você poderia ter escolhido chegar nas outras que estavam mais fáceis, soltas, rodopiando no salão. Veio até mim. Por quê?

Agora era ele que estava nervoso. "Por que eu a quis? Nem eu sei", pensou.

- Acho que ainda estou em vias de descobrir isso. Não sei.

Viu que ela decepcionou-se com a resposta. Não eram as palavras esperadas

- Você tem uma aura misteriosa que atrai. Esse jeito seu, por Deus, fiquei magnetizado! Eu te quero... - descarregou esse tiroteio de sentenças que a fez levantar a cabeça e corar. 

Aquele ser angelical posto diante de si o despertava mesmo isso. Era algo muito súbito, mas tão bonito quanto qualquer outra relíquia do tempo. Quis então desfazer-se em verdades.

- Olha. É a primeira vez que nos vemos e nada sabemos um do outro. Só que... É até estranho dizer uma coisa dessas... Eu quero descobrir o quê e quem é você, dia após dia, por toda a minha vida. Não sou nenhum tarado, psicopata, malfeitor. Apenas sinto que te quero para mim. Hoje e sempre. 

Ela que ouvia atentamente, desatou a chorar. Saíram dali. Foram para um hotel onde ficaram juntos. Quando estavam abraçados, a mulher agradeceu e revelou ser esta a maior demonstração de amor que já recebera, ainda que vinda de um estranho. Ele que estava todo tomado de amor, abraçou-a forte e assim dormiram.

Num rompante, o sujeito acorda pela manhã. A cabeça que dava mais giros que chapéu mexicano sinalizava uma ressaca daquelas. Olhou para o lado, pois queria abraçá-la, beijá-la. Estava sozinho. Levantou-se, correu ao banheiro. Nada dela ali. Ligou na recepção para saber se tinham visto alguém com as características de seu anjo indo embora e soube que ela se fora assim que o sol nasceu, apressada.

Doido de raiva, dava murros nas paredes, na cama. Chorava feito menino. Não se conformava com o fato de ter rasgado o peito, entregue seu coração sem receio. Descortinou-se para ela. Mas não bastou, ao que parece.

Achou um pequeno bilhete colocado no bolso de sua calça em que constava a breve justificativa.

"Tenho medo. Desculpe".

Sem nome, assinatura ou longas explanações. Somente duas malditas frases que inviabilizavam sua felicidade. Para o homem, ver-se apaixonado e entregar-se em vão era uma estupidez da qual jamais se perdoaria. Ligou o rádio e deitou na cama. Ouvia uma marchinha de carnaval e fumava, dando baforadas que emanavam as lembranças do dia anterior.

 VOCÊ
PARTIU DE MADRUGADA
E NÃO ME DISSE NADA.
ISSO NÃO SE FAZ!
ME DEIXOU CHEIO DE SAUDADE
E PAIXÃO.
NÃO ME CONFORMO
COM A SUA INGRATIDÃO.
(CHOREI PORQUE)

AGORA DESFEITO O NOSSO AMOR,
EU VOU CHORAR DE DOR.
NÃO POSSO ESQUECER.
VOU VIVER DISTANTE DOS TEUS OLHOS.
OH! QUERIDA!
NÃO ME DEU
UM ADEUS, POR DESPEDIDA! 

Voltou para casa. Só na quarta-feira de cinzas é que se deu conta. Tudo era perfeito demais para sobreviver na dureza do cotidiano. Pois então, que virasse fantasia de carnaval.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Tempo


Por: Viviane Cabrera





Em minhas mãos estão as horas,
escorrendo entre os dedos, gota a gota, vão-se embora
levando consigo um pouco do brilho que havia no olhar.
Deixando apenas uma vaga sensação de que tudo há de passar.

Escorre e corre 
numa velocidade tão sua onde recorre
ao metafísico momento
de esvaziar e purificar os mais diversos pensamentos.

Na queda até o chão,
o tempo que escoa da mão,
prova ao ser humano
a impossibilidade do querer insano
de controlar o que lhe é alheio,
para que este aprenda a lidar com seu anseio.

E nos pingos que finalizam o processo
de um círculo vicioso e regresso,
o relógio completa sua volta
onde a vida logo nos aperta e solta
divertindo-se às custas desses meros mortais
que querem somente ser feliz e nada mais.






sábado, 2 de fevereiro de 2013

Um Poema Para Yemanjá



Por: Viviane Cabrera





Odoiá, Yemanjá!
Mãe minha, musa da imensidão de lá e de cá.
De lá das vagas azuis que balançam a jangada.
De cá das tormentas que criam ondas homéricas nessa existência ousada.
Odoiá, Yemanjá!
Há muita sorte em ter como guia uma estrela
vestida de mar.
Ela que das lágrimas que derramo vai a transformar
em pérolas para brilhar de noite
para alegrar os olhos de quem ainda vive do açoite
dos sofrimentos que causa a vida.
Faz com que seja curada a ferida
só de nos mostrar sua beleza de Mãe d'água
em plena luz da lua.

Já te presenteei com meus negros cabelos
para agradecer teus constantes zelos
maternos e misericordiosos.
Mas hoje quero mais do que ofertar presentes cariciosos.
Quero derramar-me por inteira,
eu toda intensa nessa sua corrente de amor arrastadeira,
para colocar em palavras minha gratidão.
Esse sentimento forte que balança as cordas de meu coração.
Quero te dizer somente,
quero que fique ciente,
que com minha alma mergulho nas águas de tua instância
buscando perfeita assonância
para entregar
nas ondas do teu mar.

Salve, Janaína!
Envolve-me em tua água cristalina
 e vem receber as flores que te oferto.
São humildes, simples, mas vem de um coração aberto
e que é grato, 
por poder ter esse iluminado contato.
Tu que é enviada de Oxalá,
recebe também as velas
com pedidos para que me liberte das muitas celas
que ao longo da existência eu me trancafiei
sem saber e querer, onde me iludi e nas lamas do acaso boiei.
Desde já, te adorno com meu amor
e sei que a correnteza, um dia, há de levar toda a dor
à nulidade de não mais afetar meu ser.
Mergulho no teu mar sentindo o gosto do sal a me refazer.

Abandono meu corpo às ondas que o acariciam
 e com leves movimentos pretendo chegar onde as coisas se iniciam.
Ainda estarei contigo lá no fundo,
coisa melhor não deve haver no mundo
que estar cercada de tão doce companhia.
Vem, minha Mãe, preenche-me de teu mel e contagia a vida de alegria.
 Faz dela um palco sem fim.
Valerá a pena só se for assim.
Me despeço cá na certeza
do valor de sua realeza
e pela ciência de que para te encontrar
pode ser aqui dentro do coração ou na imensidão azul do mar.
Por isso é meu orixá.
Mãe linda, sereia encantadora e querida Yemanjá.



terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Pontos de Vista

Por: Viviane Cabrera





Quanto mais conheço as pessoas, mais me desconheço. Não. Não é loucura dizer uma coisa dessas. Pois ao toque de cada um reagimos de um jeito, somos de uma forma, metamorfoseamos. Ir em direção ao outro é caminhar para o incomum de maneira desgovernada, sobre monociclo e cheia de mil objetos  como que a fazer malabares. Cada um que se vire.

Ora euforia, ora angústia, estamos fadados a viver obscuramente. Isso de livre-arbítrio, de escolher os passos que serão dados para que não sejam em falso é balela. Deixam que acreditemos nessas coisas para que não venhamos a nos soterrar de vez com a avalanche de realidade que continuamente faz questão de esfregar em nossa cara que contos de fadas, parábolas bíblicas, mitos gregos, entre outros, apesar de muito bonitos, de fazerem sucesso, de venderem muitos livros e serem bem elaborados, em nada auxiliam em termos de praticidade a vida cotidiana do cidadão.

Há muitas formas de se conhecer alguém. A palavra é um meio de desmistificar a alma. É pílula poética. O olhar, ainda que vago, tateando paisagens, objetos e procurando por pessoas que nunca vêm, também revela um pouco do mistério e da miséria do ser humano. Posso ser interpretada pelo meu sorriso, largo, simples, solto na mansidão que há da alegria que ele exprime, ou mesmo me entregar através de um súbito e sepulcral silêncio.

Retomo o modernista Mário de Andrade, que dizia "Eu sou trezentos. Sou trezentos e cinquenta". Assim como ele, quero eu ser tantas quantas quiser, sem correr risco de alguns loucos por aí me atarem a uma camisa de força querendo, por convenções sociais, me enquadrar no que não se enquadra, no que não se tabula, não se rotula, não se nomeia. Apenas se vive. O nome disso é vida, meu bem. E desse melado, quero é me lambuzar. Sem culpa, sem receio. 



sábado, 26 de janeiro de 2013

Processo Luminoso

Por: Viviane Cabrera





O sol veio me dar bom dia.
 A nuvem aproximou-se sem perguntar se podia.
Logo depois, a chuva trouxe memórias em torrentes,
prestes a culminar em uma situação evidente.
Com os pensamentos em giros circunstanciais,
todos passam pelo mesmo ponto de coisas confidenciais
e trazem à luz do entendimento, 
fazem com que chegue ao conhecimento,
de quem interessa 
 - sem pressa - 
que o coração pulsa descompassado,
atrapalhado,
tentando equilibrar-se em meio a uma corda bamba
em um ritmo meio bossa nova, meio samba.

Nessa vereda desconhecida,
mas iluminada, na alma sentida,
a vida flui de maneira inesperada.
Não importa que esteja cá dentro agitada,
pois como acontece com as grandes estrelas
que nasceram de explosões que as tornaram soberanas donzelas,
assim eu colho do caos algo de proveitoso
para que esse processo luminoso
resulte em um bem que envolva duas pessoas enamoradas,
enlace-as uma a outra bem atadas,
com os olhos fixos num horizonte em comum.
Sem pensar no passado em momento algum.
Visando o futuro e planejando em comunhão
de vivências do hoje e do amanhã, guiadas pelo coração.




domingo, 20 de janeiro de 2013

Avante


Por: Viviane Cabrera





Se disser que muito espero
posso até revelar algo que não quero,
só para satisfazer possíveis questões
de outras almas, de outros corações.
Verdade é que anseio mais paz
do que qualquer displicência audaz,
do que essa vida que me é tão estranha.
Ora desdobra-se em momentos bons e se assanha,
ora está em queda livre e faz estatelar-se no chão.
A malabarista tenta, então, sair dessa sem nenhum arranhão.

Essa estrada aí a frente
sem iluminação e sem gente
para que possa pedir qualquer orientação,
para que possa de alguma forma saber qual vai ser a direção
que vou tomar depois que ver o sol nascer;
está mais do que a me convencer.
Vai contra o fluxo do meu pensamento
tão cheio de rancores, virulento,
que abandono longe dessa estrada
que também é um pouco da minha alma apeada.

Mirando, ainda lá, no errante horizonte.
Olhos fixos. E o sol ainda ilumina minha fronte.
Adiante há uma cota de caminho
onde preciso calçar os pés para me proteger do espinho,
onde preciso ganhar fôlego, um lugar, um pouso,
algo fixo nesse mundo solto,
para mais tarde ir embora.
É uma tentativa de viver do presente, do agora
e se desfazer do passado.
Viver sem resquício do que foi devastado.
Largar mão, enfim, de um destino desgraçado.











terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O Desatino


Por: Viviane Cabrera






Tina, no alto de seus vinte e cinco anos, indagava a avó sobre a podridão da vida. Não queria um sermão desses que cansam qualquer um. Queria meias palavras mesmo que é para encurtar o assunto. Meias palavras supriam o que precisava ser dito de maneira sucinta e prática. Nada de lenga, lenga. 

A avó, Sacramento, expert graças a experiência adquirida em seus 92 anos de vida, já era dada aos discursos homéricos e megalomaníacos, cheios de emoção. É que a cada sentença que dava, usava um causo seu para mostrar que aquilo tinha uma razão de ser e que não flutuava no absurdo. Não deixava de estar certa. Mas a neta urgia em obter respostas.

A avó estava deitada na rede. Tina, a neta, de um lado a outro, com as mãos no cabelo enrolando-os ao mesmo tempo em que mascava o chiclete, olhava para a movimentação da rua e tentava extrair uma resposta rápida.

_ O ser humano é um brinquedinho caleidoscópico. Possui muitas facetas e demonstra aos outros justamente a que mais estimulam nele. Portanto, não critique as atitudes alheias sem antes consultar sua ficha de antecedentes para com essa pessoa. Fácil demais colocar a culpa em ombros que não os nossos e profanar vestindo a túnica da santidade. Queria saber a razão da minha mãe ter me abandonado contigo. Só isso.

Logo baixou a cabeça e se colocou a chorar baixinho. Sentiu um remorso tamanho por falar daquele jeito com aquela que a mimou tanto. Mas pensando bem, Sacramento era culpada por aquilo. Se Tina não conseguia suportar aquela merda de mundo e tudo que o implicava, foi justamente pela redoma criada pelos constantes mimos de Dona Sacramento. Foi então que, tomada de fúria, disse:

_ Olha. Eu poderia ser mais forte. Eu devia ser mais forte. Você criou seu Frankensteinzinho de modo que te fosse servil, não é verdade? Quebrou minhas asas para que eu não pudesse voar, para que eu jamais aprendesse ou sequer tomasse gosto por isso. Parabéns! Conseguiu! Aqui estou eu, vinte e cinco anos, na barra da saia da avó. Uma completa idiota. 

A avó, de tão perplexa, mal abria a boca. Não conseguia se pronunciar diante daquilo tudo. Sabia que Tina era inquieta, mas nunca a vira daquele modo. Balbuciou que não era assim e que tinha muito amor pela neta, mas Tina estava tão atordoada que pouco lhe dava atenção. Num rompante, a senhora franzina toma forças de não sei onde, levanta-se da rede e pega a jovem pelo braço. É quando começa a dizer algumas verdades.

_ Menina tola! Sabe tão pouco da vida e quer cantar de galo? Faça o favor de me poupar que gastei todas as minhas forças cuidando da ingrata da sua mãe e de você que, pelo jeito, há de ir para o mesmo caminho! Sua mãe foi embora porque disse que queria ser livre. Ora essa! Livre! Há! Pergunte se eu pude me dar a esse desfrute? Meu pai a vida toda me cobrou obediência. Por essa mesma obediência, me empurrou para cima de um ser asqueroso e me fez casar e ter uma filha com a criatura. Quando fiquei viúva, meu pai fez jurar que eu não me casaria de novo para me manter "decente"... Me manter DE-CEN-TE. - e em um riso nervoso e convulso, a avó lamentava aquele destino maldito.

Tina, que agora estava estática diante de uma figura que já não reconhecia mais como sendo aquela com quem conviveu todos esses anos, mirava o espectro que tinha em frente de si com olhos arregalados, perplexa. Jamais poderia imaginar que dentro daquela senhora cheia de tantas "pílulas de sabedoria" havia tanto rancor acumulado. Sentiu-se pequena, um lixo. A avó prosseguiu.

_ Criei sua mãe com todo amor e carinho, cuidei com todo esmero. Toquei minha vida, sabe? A gente tem que tentar ser feliz do jeito que dá. Quando há barreiras, tem que achar fendas para abrir caminhos. Foi o que fiz. Como não tive oportunidade, fazia de tudo para que sua mãe fosse feliz. Aí é que residia a minha felicidade. Mas ela não compreendia isso. Se sentia sufocada. Dizia que precisava de liberdade. Por várias vezes fugiu de casa. Até que da última vez, apareceu grávida. No primeiro momento eu quis matá-la. Só que depois a gente se acostuma com a ideia, né?!

Fez uma pausa. Olhava para o nada. Como se tentasse resgatar algo. Passou vagarosamente a mão pelo rosto, a começar pela testa, escorregando até o queixo. Suspirou fundo.

_ Lembro como se fosse ontem quando você nasceu. Era tão pequena! Uma boneca! Quase nunca chorava, não dava trabalho. Sua mãe tinha medo de te pegar. Achava que ia quebrar você. Tola! Pena que... 

Tina franziu a testa com ar de interrogação.

_ Quando você completou dez dias, saí para fazer feira. Quando voltei, havia um bilhete junto ao seu berço. Dizia mais ou menos assim:

Mãe,
Perdão. Mas sou fraca. Sou incapaz de cuidar de mim, quanto mais dessa criança. Temo falhar. É uma vida que está em jogo e isso não é brincadeira. Não sou louca de colocar a perder essa joia que aí está. Por isso deposito sob sua responsabilidade. Sei que estará em boas mãos. Sigo no mundo atrás da liberdade que me é tão cara. 
Peço apenas que não me odeie. Sou humana e não sei fazer outra coisa senão seguir meu coração. 
Obrigada por tudo,
Eva. 

Comoção geral. As duas deram um abraço no qual palavras não eram necessárias. Aquele gesto por si só bastava para que se entendessem. A matriarca rígida agora estava mais benevolente.

De repente, Sacramento começa a gritar. Tina se afasta da avó assustada. A mulher se contorcia apertando com força o peito. Parece que escavar todas aquelas memórias foi demais para ela. Cai então no chão, urrando de dor e a neta, ali, estática, observa cada movimento seu. A velha, enfim, dá seu último suspiro.

Tina abaixa-se para olhar fixamente aquele ser agora inanimado. Era como que a qualquer momento Sacramento iria se mexer novamente e lhe dar uma bronca, como de costume. Mas não aconteceu. 

Foi até a adega e pegou o melhor vinho que havia. Tomou em homenagem a solidão, ao silêncio, ao nada. Caminhou até o quarto da avó e abriu seu armário. Achou um vestido de festa muito antigo. Segurou com o cabide em frente ao espelho sobre o corpo para ver se  ficava bem nela e logo vestiu. Pegou também a caixa de joias. Colocou todas sobrepostas.

Perfumes. Ah! Os perfumes da avó. Tinha montes deles. Passou tantos que perdeu a conta. Achou um sapato alto qualquer que calçou e foi até onde estavam há pouco. Mas antes, tinha que pegar outro vinho. Mais um brinde. Dessa vez, seria um brinde especial e inesquecível.

Chegando na sacada, colocou a avozinha na rede. A arrumou, deu um beijo em sua testa e como sua mãe, pediu perdão por ser fraca. Uma lágrima correu por sua face ainda muito jovem. 

Aquela verdadeira aparição vestida de roupas de outra época agora estava de pé com os braços abertos, preparada para um vôo com o asfalto como destino. Respirou fundo e em sua mente apenas uma imagem veio. Era sua avó, agora há pouco dizendo: "A gente tem que tentar ser feliz do jeito que dá. Quando há barreiras, tem que achar fendas para abrir caminhos". A neta escolheu abrir caminho no escuro. Fechar os olhos e abrir os braços para o desconhecido. E assim o foi.

A felicidade de Tina se deu naquela queda do sétimo andar até o concreto do playground, onde brincavam algumas crianças ao fim da tarde. Enquanto flutuava no nada, sentia-se livre. Não tinha a avó repressora. Não havia a mãe que a rejeitou. Não havia o mundo lá fora que tanto temia. Estava livre para sonhar apenas. Flutuava.

Tina desatinou.