Literária sempre. Monótona, jamais.

Devaneios de um protótipo humano na infoesfera.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Pontos de Vista

Por: Viviane Cabrera





Quanto mais conheço as pessoas, mais me desconheço. Não. Não é loucura dizer uma coisa dessas. Pois ao toque de cada um reagimos de um jeito, somos de uma forma, metamorfoseamos. Ir em direção ao outro é caminhar para o incomum de maneira desgovernada, sobre monociclo e cheia de mil objetos  como que a fazer malabares. Cada um que se vire.

Ora euforia, ora angústia, estamos fadados a viver obscuramente. Isso de livre-arbítrio, de escolher os passos que serão dados para que não sejam em falso é balela. Deixam que acreditemos nessas coisas para que não venhamos a nos soterrar de vez com a avalanche de realidade que continuamente faz questão de esfregar em nossa cara que contos de fadas, parábolas bíblicas, mitos gregos, entre outros, apesar de muito bonitos, de fazerem sucesso, de venderem muitos livros e serem bem elaborados, em nada auxiliam em termos de praticidade a vida cotidiana do cidadão.

Há muitas formas de se conhecer alguém. A palavra é um meio de desmistificar a alma. É pílula poética. O olhar, ainda que vago, tateando paisagens, objetos e procurando por pessoas que nunca vêm, também revela um pouco do mistério e da miséria do ser humano. Posso ser interpretada pelo meu sorriso, largo, simples, solto na mansidão que há da alegria que ele exprime, ou mesmo me entregar através de um súbito e sepulcral silêncio.

Retomo o modernista Mário de Andrade, que dizia "Eu sou trezentos. Sou trezentos e cinquenta". Assim como ele, quero eu ser tantas quantas quiser, sem correr risco de alguns loucos por aí me atarem a uma camisa de força querendo, por convenções sociais, me enquadrar no que não se enquadra, no que não se tabula, não se rotula, não se nomeia. Apenas se vive. O nome disso é vida, meu bem. E desse melado, quero é me lambuzar. Sem culpa, sem receio. 



sábado, 26 de janeiro de 2013

Processo Luminoso

Por: Viviane Cabrera





O sol veio me dar bom dia.
 A nuvem aproximou-se sem perguntar se podia.
Logo depois, a chuva trouxe memórias em torrentes,
prestes a culminar em uma situação evidente.
Com os pensamentos em giros circunstanciais,
todos passam pelo mesmo ponto de coisas confidenciais
e trazem à luz do entendimento, 
fazem com que chegue ao conhecimento,
de quem interessa 
 - sem pressa - 
que o coração pulsa descompassado,
atrapalhado,
tentando equilibrar-se em meio a uma corda bamba
em um ritmo meio bossa nova, meio samba.

Nessa vereda desconhecida,
mas iluminada, na alma sentida,
a vida flui de maneira inesperada.
Não importa que esteja cá dentro agitada,
pois como acontece com as grandes estrelas
que nasceram de explosões que as tornaram soberanas donzelas,
assim eu colho do caos algo de proveitoso
para que esse processo luminoso
resulte em um bem que envolva duas pessoas enamoradas,
enlace-as uma a outra bem atadas,
com os olhos fixos num horizonte em comum.
Sem pensar no passado em momento algum.
Visando o futuro e planejando em comunhão
de vivências do hoje e do amanhã, guiadas pelo coração.




domingo, 20 de janeiro de 2013

Avante


Por: Viviane Cabrera





Se disser que muito espero
posso até revelar algo que não quero,
só para satisfazer possíveis questões
de outras almas, de outros corações.
Verdade é que anseio mais paz
do que qualquer displicência audaz,
do que essa vida que me é tão estranha.
Ora desdobra-se em momentos bons e se assanha,
ora está em queda livre e faz estatelar-se no chão.
A malabarista tenta, então, sair dessa sem nenhum arranhão.

Essa estrada aí a frente
sem iluminação e sem gente
para que possa pedir qualquer orientação,
para que possa de alguma forma saber qual vai ser a direção
que vou tomar depois que ver o sol nascer;
está mais do que a me convencer.
Vai contra o fluxo do meu pensamento
tão cheio de rancores, virulento,
que abandono longe dessa estrada
que também é um pouco da minha alma apeada.

Mirando, ainda lá, no errante horizonte.
Olhos fixos. E o sol ainda ilumina minha fronte.
Adiante há uma cota de caminho
onde preciso calçar os pés para me proteger do espinho,
onde preciso ganhar fôlego, um lugar, um pouso,
algo fixo nesse mundo solto,
para mais tarde ir embora.
É uma tentativa de viver do presente, do agora
e se desfazer do passado.
Viver sem resquício do que foi devastado.
Largar mão, enfim, de um destino desgraçado.











terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O Desatino


Por: Viviane Cabrera






Tina, no alto de seus vinte e cinco anos, indagava a avó sobre a podridão da vida. Não queria um sermão desses que cansam qualquer um. Queria meias palavras mesmo que é para encurtar o assunto. Meias palavras supriam o que precisava ser dito de maneira sucinta e prática. Nada de lenga, lenga. 

A avó, Sacramento, expert graças a experiência adquirida em seus 92 anos de vida, já era dada aos discursos homéricos e megalomaníacos, cheios de emoção. É que a cada sentença que dava, usava um causo seu para mostrar que aquilo tinha uma razão de ser e que não flutuava no absurdo. Não deixava de estar certa. Mas a neta urgia em obter respostas.

A avó estava deitada na rede. Tina, a neta, de um lado a outro, com as mãos no cabelo enrolando-os ao mesmo tempo em que mascava o chiclete, olhava para a movimentação da rua e tentava extrair uma resposta rápida.

_ O ser humano é um brinquedinho caleidoscópico. Possui muitas facetas e demonstra aos outros justamente a que mais estimulam nele. Portanto, não critique as atitudes alheias sem antes consultar sua ficha de antecedentes para com essa pessoa. Fácil demais colocar a culpa em ombros que não os nossos e profanar vestindo a túnica da santidade. Queria saber a razão da minha mãe ter me abandonado contigo. Só isso.

Logo baixou a cabeça e se colocou a chorar baixinho. Sentiu um remorso tamanho por falar daquele jeito com aquela que a mimou tanto. Mas pensando bem, Sacramento era culpada por aquilo. Se Tina não conseguia suportar aquela merda de mundo e tudo que o implicava, foi justamente pela redoma criada pelos constantes mimos de Dona Sacramento. Foi então que, tomada de fúria, disse:

_ Olha. Eu poderia ser mais forte. Eu devia ser mais forte. Você criou seu Frankensteinzinho de modo que te fosse servil, não é verdade? Quebrou minhas asas para que eu não pudesse voar, para que eu jamais aprendesse ou sequer tomasse gosto por isso. Parabéns! Conseguiu! Aqui estou eu, vinte e cinco anos, na barra da saia da avó. Uma completa idiota. 

A avó, de tão perplexa, mal abria a boca. Não conseguia se pronunciar diante daquilo tudo. Sabia que Tina era inquieta, mas nunca a vira daquele modo. Balbuciou que não era assim e que tinha muito amor pela neta, mas Tina estava tão atordoada que pouco lhe dava atenção. Num rompante, a senhora franzina toma forças de não sei onde, levanta-se da rede e pega a jovem pelo braço. É quando começa a dizer algumas verdades.

_ Menina tola! Sabe tão pouco da vida e quer cantar de galo? Faça o favor de me poupar que gastei todas as minhas forças cuidando da ingrata da sua mãe e de você que, pelo jeito, há de ir para o mesmo caminho! Sua mãe foi embora porque disse que queria ser livre. Ora essa! Livre! Há! Pergunte se eu pude me dar a esse desfrute? Meu pai a vida toda me cobrou obediência. Por essa mesma obediência, me empurrou para cima de um ser asqueroso e me fez casar e ter uma filha com a criatura. Quando fiquei viúva, meu pai fez jurar que eu não me casaria de novo para me manter "decente"... Me manter DE-CEN-TE. - e em um riso nervoso e convulso, a avó lamentava aquele destino maldito.

Tina, que agora estava estática diante de uma figura que já não reconhecia mais como sendo aquela com quem conviveu todos esses anos, mirava o espectro que tinha em frente de si com olhos arregalados, perplexa. Jamais poderia imaginar que dentro daquela senhora cheia de tantas "pílulas de sabedoria" havia tanto rancor acumulado. Sentiu-se pequena, um lixo. A avó prosseguiu.

_ Criei sua mãe com todo amor e carinho, cuidei com todo esmero. Toquei minha vida, sabe? A gente tem que tentar ser feliz do jeito que dá. Quando há barreiras, tem que achar fendas para abrir caminhos. Foi o que fiz. Como não tive oportunidade, fazia de tudo para que sua mãe fosse feliz. Aí é que residia a minha felicidade. Mas ela não compreendia isso. Se sentia sufocada. Dizia que precisava de liberdade. Por várias vezes fugiu de casa. Até que da última vez, apareceu grávida. No primeiro momento eu quis matá-la. Só que depois a gente se acostuma com a ideia, né?!

Fez uma pausa. Olhava para o nada. Como se tentasse resgatar algo. Passou vagarosamente a mão pelo rosto, a começar pela testa, escorregando até o queixo. Suspirou fundo.

_ Lembro como se fosse ontem quando você nasceu. Era tão pequena! Uma boneca! Quase nunca chorava, não dava trabalho. Sua mãe tinha medo de te pegar. Achava que ia quebrar você. Tola! Pena que... 

Tina franziu a testa com ar de interrogação.

_ Quando você completou dez dias, saí para fazer feira. Quando voltei, havia um bilhete junto ao seu berço. Dizia mais ou menos assim:

Mãe,
Perdão. Mas sou fraca. Sou incapaz de cuidar de mim, quanto mais dessa criança. Temo falhar. É uma vida que está em jogo e isso não é brincadeira. Não sou louca de colocar a perder essa joia que aí está. Por isso deposito sob sua responsabilidade. Sei que estará em boas mãos. Sigo no mundo atrás da liberdade que me é tão cara. 
Peço apenas que não me odeie. Sou humana e não sei fazer outra coisa senão seguir meu coração. 
Obrigada por tudo,
Eva. 

Comoção geral. As duas deram um abraço no qual palavras não eram necessárias. Aquele gesto por si só bastava para que se entendessem. A matriarca rígida agora estava mais benevolente.

De repente, Sacramento começa a gritar. Tina se afasta da avó assustada. A mulher se contorcia apertando com força o peito. Parece que escavar todas aquelas memórias foi demais para ela. Cai então no chão, urrando de dor e a neta, ali, estática, observa cada movimento seu. A velha, enfim, dá seu último suspiro.

Tina abaixa-se para olhar fixamente aquele ser agora inanimado. Era como que a qualquer momento Sacramento iria se mexer novamente e lhe dar uma bronca, como de costume. Mas não aconteceu. 

Foi até a adega e pegou o melhor vinho que havia. Tomou em homenagem a solidão, ao silêncio, ao nada. Caminhou até o quarto da avó e abriu seu armário. Achou um vestido de festa muito antigo. Segurou com o cabide em frente ao espelho sobre o corpo para ver se  ficava bem nela e logo vestiu. Pegou também a caixa de joias. Colocou todas sobrepostas.

Perfumes. Ah! Os perfumes da avó. Tinha montes deles. Passou tantos que perdeu a conta. Achou um sapato alto qualquer que calçou e foi até onde estavam há pouco. Mas antes, tinha que pegar outro vinho. Mais um brinde. Dessa vez, seria um brinde especial e inesquecível.

Chegando na sacada, colocou a avozinha na rede. A arrumou, deu um beijo em sua testa e como sua mãe, pediu perdão por ser fraca. Uma lágrima correu por sua face ainda muito jovem. 

Aquela verdadeira aparição vestida de roupas de outra época agora estava de pé com os braços abertos, preparada para um vôo com o asfalto como destino. Respirou fundo e em sua mente apenas uma imagem veio. Era sua avó, agora há pouco dizendo: "A gente tem que tentar ser feliz do jeito que dá. Quando há barreiras, tem que achar fendas para abrir caminhos". A neta escolheu abrir caminho no escuro. Fechar os olhos e abrir os braços para o desconhecido. E assim o foi.

A felicidade de Tina se deu naquela queda do sétimo andar até o concreto do playground, onde brincavam algumas crianças ao fim da tarde. Enquanto flutuava no nada, sentia-se livre. Não tinha a avó repressora. Não havia a mãe que a rejeitou. Não havia o mundo lá fora que tanto temia. Estava livre para sonhar apenas. Flutuava.

Tina desatinou.