Literária sempre. Monótona, jamais.

Devaneios de um protótipo humano na infoesfera.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Crônica do Leito Vazio

Por: Viviane Cabrera






Fim de tarde. Passo a organizar cada canto de nosso ninho para que se sinta aconchegado. Aromatizo os ambientes com sândalo e deixo rastros com pétalas de rosas brancas no tapete vermelho que segue aos aposentos. Enquanto não chega aquele a quem devoto minha vida, fico imersa em uma banheira de sais e óleos perfumados. Dessa forma, minha pele será o pêssego macio que ele tocará.
Ao secar-me, espalho o mesmo sândalo que perfumou a casa no corpo inteiro. Assim, os braços e todo meu ser parecerão sua residência, seu refúgio seguro. 
Cai a noite. Visto a mais pura seda, para que quando me abrace, sinta tecido e pele uma coisa só.
Com mel nos lábios e corpo perfumado o aguardo. A cada dia, uma tâmara caramelizada coloco em sua boca. É símbolo de que estou em sua vida para torná-la mais doce, suave e alegre. Afinal, amar é adoçar a existência do outro e a nossa também.
Espalho nos aposentos, agora, pétalas de rosas vermelhas. Acendo velas e apago as luzes. Deitada no leito nupcial, aguardo o momento em que meu querido virá. Envolta na aura noturna de paixão e espera, iluminada pelo luar daqueles que se amam, fico ali imóvel. O mel nos lábios, o corpo, o coração ansioso a saltitar a cada barulho.
Cá estou eu, esperando aquele a quem fui destinada. O homem a quem devoto todo o meu amor. Peço aos deuses que ele chegue sorrateiramente e tome posse de tudo que lhe pertence. 

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O Beija-Flor


Por: Viviane Cabrera





Vislumbrava o céu. Suas nuances de azul entrecortadas por bailarinas nuvens naquela imensidão atraía meu olhar. Os olhos ali, parados. E o mundo continuava a girar. Pássaros em sua infinita liberdade voavam e experimentavam a sensação única daquele bater de asas. Estática, admirava o que minhas vistas cansadas tinham ao seu alcance. Sentada no gramado e as costas apoiadas no tronco de uma árvore, vi quando caiu à minha frente um beija-flor.

Quando criança, queria que uma fada encantada me transformasse nessa ave. O bater frenético de suas asas reluzentes, o desembaraço com que iam de flor em flor colher o doce néctar e iam embora sem nem mesmo dizer adeus. Escolhiam as que mais lhe apeteciam. Podiam escolher. Eu não. Fora que o nome também é bonito: BEIJA-FLOR.  

Todavia, nunca passei de uma tímida garotinha que sonhava um dia poder abraçar o mundo e não só beijá-lo. Fitando o pássaro, minhas mãos involuntariamente o pegaram. Talvez houvesse algo que pudesse fazer para que ele restabelecesse sua avidez e vivacidade que outrora observei.

No entanto, tudo em vão. Estava segurando um cadáver e tentando lidar com o sentimento de impotência diante das circunstâncias.

Quantas belas flores deixariam de ter seu néctar colhidos pelo beija-flor? Quanto do céu ele não mais iria percorrer com sua penugem resplandescente ao sol e seu altivo bico a cortar o ar em seus mais altos vôos? 

Sem saber o que fazer pranteei o finado. Cavei junto à árvore um buraco fundo com as unhas mesmo. Queria que meu esforço fosse digno de meu estimado e falecido amigo. Após enterrá-lo, fiz uma busca ao redor para achar pedrinhas que pudesse colocar em volta de sua sepultura. Achei também dois gravetos, que amarrei com a linha que arranquei de meu vestido. Túmulo ajeitado. E lá se vai o último adeus.

Ao colocar um dente-de-leão sobre sua eterna residência é que me dei conta. junto ao beija-flor, sepultava também os sonhos pueris de um mundo em que fosse possível atravessar a vida sem se preocupar com a altura ou a queda. Um mundo em que escolher fosse direito garantido em constituição e em verdade executado tal qual estivesse na lei.

Mais um dente-de-leão depositado sobre o pequenino túmulo. Precisava ir embora. A realidade me chamava de volta ao cruel mundo em que minhas asas foram mutiladas.