Literária sempre. Monótona, jamais.

Devaneios de um protótipo humano na infoesfera.

sábado, 9 de junho de 2012

Uma Brasa no Deserto

Por: Viviane Cabrera





Sou a incoerência habitual que há em ser mulher. Luto diariamente contra as intempéries da vida e de minha própria personalidade, a fim de aparar arestas internas. Por isso continuo de mangas arregaçadas. Não quero depender de esperança ou fé, apenas do que me compete fazer. Na balança da vida, atitudes têm mais peso do que palavras.

Gosto e desgosto na mesma inconstância que me é característica por querer tanto gostar. Acendo uma brasa na outra e nelas emendo paixões, histórias, pessoas e acontecimentos. Tudo pelo sabor da freneticidade. Quero tudo ao mesmo tempo agora e não me contento com pouco. Sou intensa a ponto de desejar o melhor sempre e exigir até mesmo de mim a perfeição.

Daí constato que sou um obstáculo intransponível a minha própria vida. Sigo, dia após dia, lapidando o que em estado bruto se encontra. Nessa baila, meses, anos, décadas, séculos e milênios se vão como areia na ampulheta. Grão por grão, passam no fino gargalo do tempo a esperar por mais fragmentos. Ao cair, um sobre o outro, sedimentam o que de humano há em mim e que se sobrepõe a todo o resto. O que interesa é que quando os sapatos já não couberem nos pés, seguirei descalça e livre para onde quiser. Sem essa de malas com resquícios de passado, carregadas de tudo que já não me serve. Não quero ter a mesma sina que Álvaro de Campos, parado consumindo-se diante das malas acumuladas pelo tempo a arrolar tudo o que foi, é e será. Ansio pela liberdade de me locomover pelos desertos sem fim - grandes ou não - até chegar em um oásis que mate minha sede, a sede que tenho de viver. 

Para tanto, permito-me a muita coisa. Deixo correr frouxo meus instintos, sentimentos, sonhos, vontades e desejos. Aceito que eles existam e faço o possível para que se concretizem. Permito-me, inclusive, ser seriamente uma palhaça. Afinal, o ser humano é dado a contradições por natureza.




*** E já que citei Álvaro de Campos, aí vai seu poema (um de meus preferidos de uma das pessoas de Pessoa):
Grandes são os desertos


Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.


Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.


Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,


Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.


Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.


Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.


Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.


Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.


Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.


Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.


Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!


Mais vale arrumar a mala.


Fim.


























Nenhum comentário:

Postar um comentário