Literária sempre. Monótona, jamais.

Devaneios de um protótipo humano na infoesfera.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O Causo do Trem

Por: Viviane Cabrera





Mais uma viagem pelos trens metropolitanos da cidade de São Paulo. Lotados, caindo aos pedaços, fora do horário previsto para chegar. Como sempre.

Na estação terminal Luz, plataforma sentido Francisco Morato, as pessoas entram nos trens desesperadas. É que se perder um, o próximo demorará no mínimo vinte minutos.Passado algum tempo, o sinal soou indicando que era hora de partir.

Observava por entre o vidro sujo do trem toda a paisagem urbana sumir diante de meus olhos, com a velocidade do transporte. “Olha o chocolate! Um é dois e três é cinco!” – falava uma voz firme que corria de um lado a outro do vagão, oferecendo seus préstimos. Era um rapaz alto, feição de quem tinha lá pelos seus trinta e poucos anos. De canto a canto, ia a voz de trovão em meio àquela tarde cinzenta, trazer chocolates a preços módicos para os passageiros. Seria normal, não fossem dois guardas da CPTM. No cumprimento de seu trabalho, enquadraram o vendedor requisitando a mercadoria “ilegal” e o advertindo de que desceriam na estação Barra Funda para que ele prestasse esclarecimentos.

O homem com uma pequenina sacola nas mãos estremeceu. Passou a vociferar contra os dois guardas: “Não entrego nada! Vocês vão ter é trabalho comigo. Isso aqui é meu, ó! Que vire migalha, mas não entrego”. Enquanto isso, uma das autoridades passava um rádio pedindo reforços e dando a localização do vagão – numeração e tudo mais. Os dois – uma mulher robusta, visivelmente com medo, e um rapaz com olhos humildes que ouso dizer tinha até certa dor de ter de se impor daquele jeito, pois parecia ser alguém de paz – conversavam com o ambulante justificando a ação como sendo apenas uma rotina de suas funções. “Que oh! E eu? Também sou pai de família! To perdendo aqui o leite das crianças! E agora? Quem vai botar comida na mesa lá em casa?”, dizia a altos brados, com tentativas frustradas de se desvencilhar daquela dupla que o censurava.

Nas idas e vindas de um ponto a outro do vagão, esbaforido de raiva e resmungando lamentos, o vendedor sacudia os chocolates e buscava no rosto das pessoas um olhar de aprovação. Perguntava a todos o porquê de o proibirem de trabalhar e deixarem à solta bandidos que “batem a carteira de trabalhador”. Poucos se manifestaram, mas os que o fizeram mostravam-se a favor de deixar o comerciante em paz. "Finge que não viu! É simples", gritou alguém lá do fundo.

Não há como julgar qualquer um dos três. Sem exceção, tinham direito de trabalhar - ou pelo menos, deveriam. O único “erro” do vendedor ambulante foi desempenhar uma “atividade ilegal” por não pagar impostos. Não dava o quinhão do Estado. É o que fazia dele um transgressor. A guarda feminina nem ao menos abriu a boca. Era nítido o medo de que aquela situação evoluísse para outra pior. Já o seu parceiro, após muitas ofensas do vendedor, tentava resolver da melhor forma. No entanto, notava-se um certo desconforto por parte deste em relação aos olhares duros dos passageiros que apoiavam o outro.

Apesar da taxa de desemprego cair nos últimos anos, há ainda trabalhadores que não conseguem vaga no mercado por não serem qualificados o suficiente. O vendedor faz parte dessa estatística. Por não conseguir um emprego de carteira assinada, muitos partem para a informalidade. Afinal, “O cabra precisa se virar, poxa!”, como bem disse um senhor ao tentar defender o ambulante.

Chega a estação Barra-Funda. O vendedor, muito mais alto e forte que qualquer um dos guardas, blefava com gestos de quem iria desferir um soco à la Muhammad Ali. Tão logo ameaçava, baixava as mãos. Estava era ansioso por se desvencilhar e continuar sua rotina.

Eis que ele sai do vagão. Corre com a sacolinha de chocolates balançando a cada frenético movimento seu. Logo foi pego pelos reforços pedidos via rádio no início da narrativa. O guarda que queria apaziguar e lhe advertiu no trem sobre vender mercadorias agora encontrava-se por cima do ambulante, contendo-o com o cassetete e o peso de seu corpo. Em poucos segundos, a porta fechou. O trem seguiu em frente o caminho a que estava atrelado.

Ouvia-se murmurinhos de louvação, tanto ao vendedor quanto ao guarda. “Tá todo mundo fazendo seu trabalho. Que se vai fazer?”, dizia uma senhora idosa, impressionada por tudo que presenciou.

Fato é que essa curta tragédia mostrou-me que direitos todos temos em teoria, só que a prática é bem diferente. Num mundo pautado pela busca do lucro a qualquer preço, sujeito que não produz fica à margem da sociedade. Mais de escanteio ficaria se não consumisse, contribuindo assim para fazer girar a economia de seu país. Os trabalhadores informais arriscam-se por nada mais nada menos do que um pouco de dignidade. Querem trabalhar, só isso. Num mundo em que concessões custam caro, o preço que o Estado pede para que estes sejam reconhecidos são os impostos.

A dupla de guardas não parecia condenar o vendedor. Ao contrário do que se pensa, via-se em seus olhos um pesar em ter de efetivamente cumprir as normas. Pena que não deixaram que isso viesse à tona. Contudo, cada qual com sua bagagem de vida, suas histórias. É o que justifica a maneira de ser e agir do indivíduo.

Final de meu destino, desci do trem carregada de pensamentos. Não havia conclusões. Somente uma profunda e angustiante certeza de que os mártires dessa tragédia não fazem ideia de seu protagonismo. Não mesmo.

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